Dossiê Superinteressante: como surgiu o Comando Vermelho (CV)

29/10/2025

Em maio de 2017, a revista Superinteressante publicou a edição 374-A – um dossiê sobre as facções criminosas no Brasil. O conteúdo da revista foi totalmente produzido pelos jornalistas da República – Agência de Conteúdo.

Em vitude da megaoperação realizada no Rio de Janeiro em 28 de outubro de 2025, que deixou pelo menos 121 mortos – a ação policial mais letal do Brasil –, reviramos os nossos arquivos para recuperar a reportagem que mergulhou na origem e no modus operandi da facção Comando Vermelho (CV). O texto é assinado pelo jornalista Robson Pandolfi.  

⚠️ É importante ressaltar que, nos últimos anos, o tráfico de drogas já não é a principal fonte de lucro do CV. O crime organizado tem diversificado suas fontes de renda em mercados ilegais de combustíveis, serviços de internet, bebidas, tabaco, entre outros. Embora desatualizada, a reportagem de 2017 ajuda a entender como o Comando Vermelho se tornou uma das maiores facções criminosas do Brasil. 

 
 
 
 
 
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Giovani Szabo chegou contrariado à sala da administração do presídio
. No dia anterior, o assaltante de bancos condenado a décadas de encarceramento na temida penitenciária de Ilha Grande, no Rio de Janeiro, foi flagrado lendo Vietnã – guerrilha vista por dentro, do correspondente de guerra inglês Wilfred Bulcher. Não que ler fosse proibido. Mas o experiente capitão Nelson Salmon, diretor do Instituto Penal Cândido Mendes, notou que havia um clima estranho no ar.

O livro encontrado com o preso, filho de um sindicalista italiano e de uma sobrevivente de Auschwitz, narra a resistência vietnamita ao exército norte-americano. E explica como agia o Exército Popular de Libertação Nacional. Os detalhes são minuciosos – Bulcher descreve desde fórmulas para produzir pólvora caseira até os complexos sistemas de túneis de fuga. Os trechos sublinhados por Szabo formavam um manual de procedimentos de combate. O diretor, que temia uma rebelião, chamou o detento para um papo-reto.

Szabo estava preocupado: encontros com a administração sempre são vistos com desconfiança pela massa carcerária – que não hesita em condenar à morte suspeitos de traição. O preso foi logo explicando: “Capitão, o negócio é o seguinte: a gente tá lendo uns livros assim pra poder se prevenir contra o pessoal do fundão”, teria dito, conforme relato do jornalista Carlos Amorim no livro CV-PCC: a irmandade do crime.

O “pessoal do fundão” eram os presos enquadrados na Lei de Segurança Nacional, todos reunidos na galeria B do presídio. Ali, misturavam-se não só assaltantes de bancos, mas também presos políticos. Entre 1969 e 1975, passaram por Ilha Grande mais de 60 prisioneiros de grupos como a Aliança Libertadora Nacional (ALN), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares).

Em 1979, já não havia mais presos políticos em Ilha Grande. Mas seu legado tático e ideológico permanecia vivo entre os residentes. “Eles aprenderam com os políticos um tal de socialismo científico e um tal de materialismo histórico. E agora querem formar grupos que eles chamam de célula ou coletivo”, revelou Szabo ao diretor do presídio.

Ao colocar lado a lado militantes e assaltantes, a ditadura militar plantara uma semente perigosa. Seu fruto, que seria batizado de Falange Vermelha e, depois, de Comando Vermelho – em referência às ideologias de esquerda –, não demoraria muito para germinar.

Ilha do medo

De tão ruim que era, o presídio Cândido Mendes ganhou o apelido de “Caldeirão do Diabo”. Era a instituição com menos recursos entre as penitenciárias cariocas. Faltava comida, colchões e cobertores. “Papel higiênico era coisa de que nunca se ouvia falar”, escreve Amorim. Construída para abrigar 540 presos, a cadeia sempre operou acima da sua capacidade. Em 1979, contabilizava 1.284 homens encarcerados.

À época, o controle do local era disputado por diferentes grupos: a Falange Jacaré (ou Zona Norte), que abrigava presos violentos vindos das favelas e bairros pobres de Del Castilho, Bonsucesso e Jacaré, na Zona Norte do Rio; a Falange Zona Sul, que comandava a maior parte da galeria C; e a Falange da Coreia, dona de um pedaço da mesma galeria, conhecida por roubar e estuprar outros presos.

Outra falange reunia os presos “independentes”, como Szabo, mas se mantinha aliada à Falange Jacaré, que era quem ditava as regras do presídio. No “fundão”, sob o comando daqueles criminosos que haviam convivido com presos políticos, organizava-se outra falange, então conhecida como LSN. Era a única a se opor abertamente à gangue dominante. “Os presos formavam uma massa amorfa, dividida. Matava-se com frequência, por rivalidades internas, por diferenças trazidas da rua ou por encomenda da própria polícia”, conta William da Silva Lima no livro 400 Contra 1 – Uma História do Crime Organizado, que em 2010 foi transformado em filme pelas mãos do cineasta Caco Souza.

William é um dos mais célebres criminosos da história do Brasil. Assaltante de bancos conhecido como “Professor”, ele se uniu a outros internos para dar um fim aos desmandos da Falange Jacaré – à qual fontes atribuem a origem de uma das mais temidas facções cariocas, o Terceiro Comando, hoje extinto. Junto com Professor estavam Rogério Lemgruber, o “Bagulhão”, José Carlos Gregório, o “Gordo”, José Carlos dos Reis Encina, o “Escadinha”, e Paulo Roberto de Moura Lima, o “Meio-Quilo”. A configuração inicial da Falange Vermelha estava definida.

Na madrugada de 17 de setembro de 1979, o grupo amontoou móveis e colchões na porta da galeria “C” – onde estava a falange rival – e lhe deu um ultimato: quem não se rendesse seria morto. Dois líderes resistiram e foram assassinados. Outros quatro tentaram romper o cerco e foram trucidados por mais de 30 presos. Alguns conseguiram fugir, abrindo um buraco na parede da cela. O banho de sangue só terminou com a intervenção dos guardas e da Polícia Militar – que não haviam feito nada até então. Naquela que ficou conhecida como a Noite de São Bartolomeu – em uma alusão irônica ao massacre dos protestantes pelos católicos em 1572, em Paris – 21 presos foram mortos. A Falange Vermelha, então conhecida como LSN, passou a controlar o presídio.

Em 1994, o prédio seria demolido a golpes de marreta numa manhã chuvosa de domingo. A decisão do governo de Leonel Brizola fora tomada sem aviso prévio e longe dos holofotes da mídia. Àquela altura, no entanto, o mal já havia sido criado – e escapado para bem longe dos muros e das águas de Ilha Grande.

Galinha dos ovos de ouro

As imagens circulavam em rede nacional. A bordo dos helicópteros, as câmeras de TV davam um zoom inédito na face mais violenta dos morros cariocas. Moradores da favela Santa Marta viviam em meio a uma guerra entre facções rivais. A polícia, tentando controlar a situação, atirava de baixo. Traficantes gravavam entrevistas. Em uma participação emblemática na TV, o traficante Boca Mole anunciava: “O Zaca, ex-polícia que quer dar uma de bandido, não vai tomar a boca não”.

O Santa Marta foi cenário das primeiras grandes guerras do tráfico no Rio de Janeiro. O local havia sido tomado pelo ex-PM Zacarias Gonçalves Rosa Neto. Conhecido como “Zaca”, foi um dos fundadores do Terceiro Comando. Emílson dos Santos Fumero, o “Cabeludo”, que dominava a parte baixa da favela, queria retomar o controle. Aquela última semana de agosto de 1987 foi de tiroteios intensos.

A disputa mostrou que a polícia não estava preparada para controlar os bandidos. As trocas de tiros aconteciam a poucos metros do maior grupamento policial da Zona Sul do Rio, o 2° Batalhão da PM. A batalha se estendeu nos fundos do Palácio da Cidade, sede da prefeitura, e só terminou quando os rivais aceitaram a trégua. Nenhum dos traficantes foi preso.

Uma semana depois, um enterro mobilizava outra favela do Rio: o Jacarezinho. O morto era “Meio-Quilo”, um dos pioneiros da Falange Vermelha em Ilha Grande. A polícia não ousou se aproximar do funeral que a comunidade do morro prestou ao traficante. “Ei, ei, ei, mataram nosso rei”, cantavam os moradores, num clima que mais se assemelhava ao enterro de um herói nacional do que do traficante que controlava o principal ponto de venda de cocaína do Rio.

Entender a dinâmica dos morros é um aspecto fundamental para se compreender as facções cariocas – e suas diferenças em relação a grupos de outros lugares. “O crime organizado no Rio, no que se refere às facções, é muito focado no aspecto geográfico”, explica o procurador de Justiça Márcio Sérgio Christino, especialista em investigações sobre o crime organizado. “O CV está instalado fortemente nos morros, que dão a eles certa proteção. É uma vantagem na atuação criminosa, no enfrentamento com a polícia e até no modo como se estruturam.”

Ao final dos anos 1980, a Falange Vermelha começaria a ser chamada de Comando Vermelho. E a sigla CV logo se espalharia por favelas e cadeias. Onde atuava, a facção mantinha uma relação de boa vizinhança, fornecendo auxílio financeiro, medicamentos e proteção em troca de silêncio. Nas comunidades inimigas, no entanto, o remédio era só um: a morte. Os morros viraram um produto valioso, com o CV disposto a usar todas as armas para controlá-los.

Em outubro de 1987, a população brasileira descobriria isso da pior maneira, quando Zaca e Cabeludo travaram uma nova guerra. Dessa vez, foram 14 dias de conflito. O ex-policial acabou preso. Cabeludo morreu um ano depois, com um tiro no peito após tentar roubar um carro. Sem dono, a Santa Marta acabaria nas mãos do CV, transformando-se numa espécie de panteão da mitologia do crime no Brasil.

Como surgiu o Comando Vermelho: dossiê abordou origem da maior facção criminosa do Brasil.

Como surgiu o Comando Vermelho: dossiê abordou origem da segunda maior facção criminosa do Brasil, só atrás do PCC.

CV perde espaço

Amanhece no Rio de Janeiro. Às oito da manhã de um domingo, 28 de novembro de 2010, nada menos que 3 mil policiais, paraquedistas do Exército e fuzileiros navais — apoiados por veículos blindados e helicópteros de combate — avançam sobre o coração do Comando Vermelho: o Complexo do Alemão, formado por 14 favelas, 30 mil casas e quase meio milhão de moradores.

A operação ocorre uma semana após uma série de ataques contra a população carioca, atribuídos a integrantes da cúpula do CV. Em Irajá, na Zona Norte, cinco homens incendiaram veículos e metralharam uma cabine da Polícia Militar. Na Linha Vermelha, seis criminosos atearam fogo em outros dois carros e abriram fogo contra um veículo da Aeronáutica. Ninguém morreu — por sorte.

O “exército vermelho” que defendia a favela estava bem armado. O arsenal incluía granadas, fuzis e até artilharia antiaérea — morteiros e metralhadoras .30, capazes de perfurar blindados e derrubar helicópteros. “Os outros [ADA e TCP] também atiram em você, mas nada se compara ao CV”, disse um delegado carioca ao El País.

Os militares que subiram o morro estavam prontos para uma guerra — mas ela não aconteceu. O Alemão estava calmo, e os traficantes não resistiram. Mais uma vez, o CV aplicava as táticas de guerrilha aprendidas em Ilha Grande: dissolver-se, não confrontar. Misturados à população, os criminosos fugiram para outros redutos. Ficaram as armas, o dinheiro e a droga: 33 toneladas de maconha, dez delas atribuídas a Fernandinho Beira-Mar.

Segundo a PM, o total apreendido somava cerca de R$ 100 milhões — em apenas dois dias de operação, e em uma única das cerca de 300 comunidades controladas pelo CV, conforme o Ministério Público do Rio.

Uma organização difusa

Não há estimativas precisas do quanto o Comando Vermelho arrecada por ano. Diferente do PCC, que possui estrutura centralizada e até “balanços financeiros”, o CV opera de forma horizontal. Não há um líder único. As decisões mais importantes são tomadas por um colegiado — a chamada “comissão” ou “conselho”.

A criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Complexo do Alemão foi um duro golpe. A prisão de líderes históricos como Marcinho VP, Fernandinho Beira-Mar e Elias Maluco abriu espaço para novos nomes, antes inexpressivos, tanto nos morros quanto nas penitenciárias fluminenses.

As UPPs reduziram o domínio territorial do CV: contiveram o avanço nas zonas Sul e Norte até Ramos, bairro de classe média próximo ao aeroporto do Galeão. Rachada, a facção se enfraqueceu, abrindo espaço para rivais.

“Por ser mais antigo e estabelecido, o CV ocupa territórios consolidados. As facções mais novas crescem em áreas ainda livres, expandindo-se onde o CV já está fixado”, explica o procurador Márcio Christino.

Além dos tradicionais inimigos — Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigos dos Amigos (ADA) —, um novo competidor entrou em cena: o Primeiro Comando da Capital (PCC), facção paulista que vem expandindo sua influência por todo o país.

Acabou o amor

Em setembro de 2016, a cúpula do PCC enviou um comunicado manuscrito a seus membros, a partir da penitenciária de Presidente Venceslau (SP). No texto, a facção anunciava o rompimento definitivo com o Comando Vermelho: “Depois de três anos buscando diálogo, decidimos partir para o ataque”, dizia o “salve”.

Um mês depois, 18 detentos — dez do CV e oito do PCC — morreram em disputas nos presídios de Roraima e Rondônia.

Durante duas décadas, as facções mantiveram uma parceria logística para o transporte de drogas e armas de países vizinhos, reduzindo custos e riscos. Mas a relação ruiu. As causas: dívidas do CV com o PCC, aproximação dos paulistas com ADA e TCP, e alianças do CV com inimigos do PCC — como a Família do Norte (FDN) e o Primeiro Grupo Catarinense (PGC).

“O CV e a FDN se uniram por meio de seus principais líderes, então presos em penitenciárias federais”, explica o MP do Rio. O acordo com o PGC também irritou o PCC, que ainda enfrenta resistência para atuar em Santa Catarina.

O PCC impõe controle rígido e cobrança de taxas. O CV prefere acordos mais flexíveis, sem interferir diretamente nas atividades dos parceiros — uma relação de “ganha-ganha”. No caso da FDN, a parceria garantiu o uso de rotas amazônicas de tráfico, permitindo negociar melhores preços com fornecedores das fronteiras.

No fundo, a disputa é pelo controle das rotas internacionais de drogas. O CV fortaleceu sua presença no Norte, especialmente na fronteira com Peru e Colômbia, pela chamada rota Solimões. O PCC perdeu espaço nessa região, mas manteve o domínio da rota paraguaia — mais acessível e estratégica.

A morte do narcotraficante Jorge Rafaat, em 2016, no Paraguai, consolidou o controle paulista. “Desde então, só o PCC compra cocaína naquela região para trazer ao Brasil”, afirma o procurador Márcio Christino. “O CV terá de usar rotas mais longas e difíceis pelo Norte. O abastecimento ficará muito mais complicado.”

O rompimento provocou uma guerra aberta nas prisões. Em outubro de 2016, dez presos ligados ao CV foram mortos em Roraima; no dia seguinte, o PCC retaliou, assassinando oito rivais. Com a entrada da FDN no conflito, o número de mortes explodiu: 123 presos mortos em massacres no Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte — mais do que no Carandiru, em 1992.

Hoje, CV e PCC lutam para se reerguer. O CV tenta consolidar sua influência no Norte; o PCC, ampliar acordos com antigos inimigos dos cariocas. As duas maiores facções do país — criadas, ironicamente, para “trazer paz” aos presídios — transformaram-se em máquinas de guerra, inaugurando um novo e sangrento capítulo da história do crime no Brasil.